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sábado, fevereiro 28, 2004

CAFÉ MONTALTO
Um blogue sobre o escritor Manuel da Silva Ramos, a literatura e a história do Portugal contemporâneo.

Bem-vindos! O ideal seria poder oferecer-vos um café; não sendo possível, convido-vos a entrar no Café Montalto.
É com grande prazer que vos apresento este livro, na estreia do blogue homónimo, precisamente num dia muito especial para mim, o do centenário do Sport Lisboa e Benfica. Como verão, o livro também fala de futebol, e até de um modo dessassombrado.

Vida e luta na Manchester portuguesa
(recensão crítica a Manuel da Silva Ramos, Café Montalto, Coimbra e Castelo Branco, Alma Azul, Outubro de 2003, 349 p.)

É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.” (Raul Brandão, Húmus, 1916)

E o relógio diz-nos a hora, o minuto e o segundo, numa auréola pálida e silenciosa, anuncia-nos, com toda a certeza da sua sabedoria, que a noite desliza e mergulha nas trevas mas, ao mesmo tempo, avança para um novo sol.” (Ray Bradbury, Fahrenheit 451, 1953)

Se não se deseja que um homem ponha problemas de ordem política, não se lhe dê duas soluções à escolha; dê-se-lhe só uma ou, melhor, não se lhe dê nenhuma.” (idem)

Uma cidade estende-se pela encosta da montanha mais alta do Portugal continental, moldando-se aos braços irregulares das ribeiras e colando os seus extremos horizontalmente. Essa cidade, a Covilhã, foi durante muitas décadas um dos principais pólos da indústria têxtil lusa, e em paralelo, um bastião do operariado fabril. Apelidada justamente de Manchester portuguesa, dela nos dá o autor um fresco do final da ditadura à consolidação da democracia (1963-1978), servindo-se do regresso dum filho pródigo à terra natal, na actualidade.
Manuel da Silva Ramos, nascido em 1947, tem uma obra singular no panorama português: a inovação estilística complementa o interrogar de temáticas clássicas, como o amor (Os três seios de Novélia, 1969; Beijinhos, 1996), o prazer (Coisas do vinho, ilustrado por Zé D’Almeida, 1999), a vida em sociedade e a política (Portugal, e o futuro?, 1999). Na esteira dum José Cardoso Pires, problematiza a identidade nacional através da análise de ícones da história pátria (os lusíadas, com Alface, 1977; Adeusamália, 1999). Também ousa introduzir autores universais nos seus livros, propondo a obra e o seu escritor como centro do mundo das representações e, portanto, do imaginário universal das pessoas e dos locais (Jesus – the last adventure of Franz Kafka, 2002). A amplitude e diversidade de abordagens remetem para a experiência de vida do autor, exilado em França durante grande parte da sua vida (1970-1997).
O presente romance, que o autor designa por “factoficção”, associa um enredo ficcional clássico a uma minuciosa e extensa exposição do quotidiano covilhanense daquele tempo. O autor prossegue o exemplo de Ferreira de Castro em A lã e a neve (1947), sobretudo no local escolhido e no olhar verista e atento às classes populares. A sua reconstituição histórica é baseada em documentação vária, depoimentos que o autor coligiu e na sua vivência enquanto conterrâneo. De resto, o livro integra parte desse material: fotografias de fábricas, eventos e padrões de tecido, reproduções de cadernetas sindicais, trechos de entrevistas, etc..
Silva Ramos combina a ficção e o documental dum modo admirável: não tem receio de dar a muitos dos personagens da elite local os nomes próprios dos homens em que se basearam, apesar da controvérsia que aí podia provocar (e está provocando), dado implicar com a imagem de famílias locais ainda influentes. Paralelamente, conta episódios de modo tão vivo e interligado que somos levados a tomar como realidade. O efeito da combinação cria assim um jogo de espelhos muito sedutor, dir-se-ia que mágico, revelando a faceta surrealista do escritor. O episódio do ciclista que desiste duma corrida de S. Silvestre para cear no café Solneve (p. 69) lembra as aventuras de Spirou e Fantásio em A máscara misteriosa (1956). Ora, isto podia ter sucedido, bastando associar a invernia serrana e o poder de atracção dos cafés da Covilhã, de que o autor nos dá conta.
A cuidada descrição dos vários cafés da cidade justifica-se não só pela sua relevância enquanto pontos de sociabilidade como pela sua compartimentação classista e política. De resto, o Café Montalto que dá nome ao livro foi o principal ponto de encontro da burguesia local, marcando as divisões classistas na cidade e aonde os operários só puderam aceder após o golpe militar de 25 de Abril de 1974.
A situação de exploração do operariado é-nos mostrada em várias facetas. Desde logo, o mau estado de saúde, devido à má alimentação (a refeição costumeira era batatas e pão), à falta de condições higiénicas e laborais, ao mau acompanhamento médico. Eram frequentes os acidentes de trabalho (e são vários os exemplos: vd. p. 121), causados pela maquinaria obsoleta e pela falta de segurança laboral, o que leva o autor a denunciar a insensibilidade dos patrões: “O que é que os patrões sabem do sofrimento? Sabem eles que há lançadeiras que saltam dos teares como obuses enfurecidos e que se encaixam no rosto dos tecelões? Isso aconteceu com três ou quatro e ficaram sem uma vista. E que dizer das centenas que ficaram sem dedos desde que a Covilhã é a Covilhã pois o operário não só trabalha com a máquina como faz a manutenção dela” (p. 121/2). Pairava como uma ameaça a possibilidade de expulsão de modo arbitrário e/ou face à mínima queixa ou reivindicação salarial. Na caderneta profissional do operário inscrito obrigatoriamente no sindicato corporativo constava um espaço para notas, a «ressalva», que os patrões usavam para denegrirem os trabalhadores, o que lhes fechava automaticamente as portas em muitas fábricas. A repressão aos operários reivindicativos era brutal, o destino a prisão na capital por longas temporadas (uma lista de 17 operários da região detidos entre 1944 e 1968 pode ver-se na p. 237/8). A exploração ocorria também a nível sexual, com certos patrões abusando de operárias, a troco duma compensação material para atenuar uma existência pobre e miserável. No fim da vida, eram desterrados para um lar decadente e ultra-lotado, a segurança social foi uma miragem até à democracia.
Só os patrões mais liberais e/ou oposicionistas é que eram uma excepção a esta dominação arbitrária e exploradora. O autor conta inclusivamente a história do industrial Zé Vicente que, após um despedimento em massa provocado pelas grandes greves operárias de 4/4/1946 (p. 37 e 131), foi buscar os trabalhadores covilhanenses à prisão para trabalharem na fábrica dele, ao jeito de Oscar Schindler.
O operariado é retratado em toda a sua dimensão humana, abarcando as pequenas misérias e traições a que deitava mão, como a prostituição ou o operário «amarelo» orador de lapela nas sessões pseudo-harmonia de classes. Mostra-se também a perdição pelo álcool e o futebol como escape social, sendo o campo do Sporting Clube da Covilhã usado para insultar os patrões e a ditadura no meio do anonimato da berraria durante os jogos.
Não por acaso, a prostituição é também o elo de ligação com o enredo romanesco. Uma das prostitutas (Etelvina), muito popular e matrona, é a mãe que comete incesto com o filho (sem ambos saberem) e cuja filha se unirá a este posteriormente, no início na ignorância dos factos, depois em consciência (o que era facilitado por nunca terem vivido juntos). O tema do incesto é recorrente na literatura universal, e já isso é revelador da sua importância na ordem e ética sociais. Também ao tema não é alheia a literatura portuguesa, desde Os Maias de Eça de Queirós (1888) ao Pedro e Paula de Hélder de Macedo (1998). Em Café Montalto sucede que o tema reenvia para a situação subordinada do operariado, pois a mãe do protagonista prostitui-se com um industrial por necessidade material e fica sem o filho por troca deliberada no hospital (recebendo um nado-morto). Esta trama complexifica a questão do incesto, pois coloca-a no contexto das fragilidades e dependências das classes sociais desfavorecidas, ligando-a ao problema da prostituição. Por outro lado, os irmãos que se unem conjugalmente remetem para o cruzamento classista, como se o autor quisesse demonstrar que a sociedade emenda os seus próprios erros e que existe sempre a esperança, mesmo na solução mais inesperada. E, sobretudo, que existe um valor humano e solidário que nada demove: o amor. A rosa triunfa sobre a erva-daninha, na evidência da sua beleza, da sua harmonia. Como refere Espinosa (Tractatus theologico-politicus, 1650): “Acontece com frequência lermos em livros diferentes histórias em si mesmas semelhantes, mas que julgamos de forma muito diversa, de acordo com as opiniões que formámos dos autores”. No caso em apreço, o julgamento é sobretudo determinado pelo enredo.
Para além do operário, destaca-se o mundo polifacetado das classes médias. O protagonista Rui Vaz Faleiro, um estudante liceal que se torna operário e depois jornalista e exilado (numa clara alusão autobiográfica), espelha aqueles segmentos da classe média que se opunham à ditadura, representando uma minoria audaz da sociedade local, e por extensão, da sociedade portuguesa. O protagonista permite igualmente uma boa passagem para a história ficcional, pois é filho dum industrial imoral e cúmplice da situação, surgindo assim uma luta entre liberdade e opressão. A asfixia do espírito crítico, da pluralidade de pensamento e da rebeldia juvenil, que ocorre na escola é como uma sinédoque do resto da sociedade. Nem a imprensa local escapa, sendo preciso o vizinho Jornal do Fundão para representar a crítica à situação. A uma “sociedade paternalista, autoritária, moralista” (p. 123) e ao o conluio de interesses entre industriais, clero e ditadura impõe-se a união dos operários e da classe média esclarecida para opor resistência, denúncia e exigência de desenvolvimento integral. Essa aliança teve como exemplos maiores a indómita recepção ao candidato presidencial oposicionista Humberto Delgado (1958) e o projecto de insurreição popular armada da LUAR- Liga de Unidade e Acção Revolucionária, cujo objectivo inicial era a ocupação da Covilhã (1968). O projecto abortou não por inexperiência (recorde-se o desvio do avião da TAP Casablanca-Lisboa, em 1961, e o assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, em 1967), mas por causa da detenção do seu líder, Hermínio da Palma Inácio.
Com a revolução de 1974 advém a libertação espiritual do operariado e dos oposicionistas, num contexto de inversão simbólica do poder (como se a subversão carnavalesca se tivesse tornado realidade), período de festa e excessos, mas com o autor recusando o revanchismo sobre os patrões e seus aliados, impondo a dignidade como um valor para todos. A superioridade moral da democracia passa por aqui.
No decénio seguinte, a Covilhã perde cerca de duas centenas de fábricas e o Café Montalto é vendido para agência bancária (em 1986), mergulhando a cidade numa grave crise. A Universidade foi a porta de saída, resta saber se suficiente para fomentar um desenvolvimento sustentável.
Manuel da Silva Ramos notabilizou-se cedo, sendo galardoado com o Prémio de Novelística Almeida Garrett aos 22 anos, para Os três seios de Novélia. Foi contemplado com bolsas de criação literária desde que regressou ao país, o que retribuiu com uma produção expressiva (7 grandes títulos de prosa desde então, além de poesia). Este seu último livro merece uma leitura atenta, sendo propício a uma reflexão e debate sobre o passado recente do país e sobre o papel da memória na construção da sociedade portuguesa. Como salienta Alberto Manguel: “Todos nos lemos a nós próprios e ao mundo à nossa volta para vislumbrarmos o que somos e onde estamos” (Uma história da leitura, 1996).
Uma última nota para a editora, a Alma Azul, que apresenta uma edição de grande qualidade (bom papel, lombada cozida, mancha gráfica generosa), o que é raro no meio e por isso deve ser elogiado. Só é pena a qualidade das fotografias ser irregular e não ter um índice, lacunas facilmente resolúveis numa nova edição.
Daniel Melo
(historiador)



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# posted by Daniel Melo : 3:54 da tarde

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